Ainda a crónica - balanço da aula de 3/3
Embora em aula um aluno tenha lido crónicas reunidas em livro (e cada vez mais as há), o habitat natural da crónica é o jornal e a revista, ou seja, as publicações periódicas. A crónica trata geralmente de assuntos do quotidiano, da política, da sociedade, com uma ligação amiúde carregada de real, ligada aos acontecimentos, simplesmente menos dependente dos factos concretos que, em princípio, uma notícia. A crónica ocupa um espaço nobre no jornal, uma coluna, pode ter foto do autor, é sempre assinada. Por regra, é bem escrita - a pessoa que a assina domina as regras da gramática, sabe expressar-se.
Aqui, alguns exemplos de interessantes crónicas não-literárias: Pedro Tadeu, «O futebol devia ser proibido»», João Pedro Henriques, «Violência Doméstica. Crime sem Castigo», ambos no DN de hoje, qeu aqui uso por serem de acesso aberto.
Quando se torna a crónica literária? Bem, não havendo uma regra óbvia , a crónica literária dá um salto no modo como conta, e tem tendência a libertar-se do referente imediato.
Os casos de Sttau Monteiro, Miguel Esteves Cardoso e António Lobo Antunes são luminosos:
1) Sttau Monteiro apaga-se para dar voz a uma personagem, a Guidinha, uma menina pré-adolescente muito pespineta, malcriadita e sem papas na língua, que passa a vida a dar pontapés na lógica (ainda por cima em torrente) e na pontuação - também daria na gramática, não fosse o jornal na época ter provavelmente imposto limites. Mas penso em Manoel de Barros, em Raymond Queneau (Zazie dans le metro), em Guimarães Rosa (Grande Sertão - Veredas), em Mia Couto.
2) Miguel Esteves Cardoso não conta propriamente uma história, antes trata uma questão moral da sociedade portuguesa, quase sempre com três peculiaridades: a) poucos ou nenhuns tinham reparado nela; b) fálo com um ouvido para exemplos tão estapafúrdios quão certeiros, reveladores de um grande ouvido; c) no final, como com Oscar Wilde, saímos mais divertidos e mais lúcidos, em igual medida, divertidos «com o disparate», mas coçando mentalmente a cabeça e reconhecendo que «o gajo até tem alguma razão».
3) Lobo Antunes nunca abandona o seu estilo, a sua voz, ao contrário de outros escritores, que se tornam «mais contidos», mais secos, ao escreverem para um jornal. Na crónica abordada em aula (ver último post), temos o melhor deste autor: o seu sentido de observação, a capacidade poética e crítica em iguais doses, uma voz que narra e que, paulatinamente, vai ampliando a força e o alcance do texto, tornando-o quase cósmico, devolvendo-nos uma realidade que, depois de trabalhada pelo seu método quase surrealista, nos magoa melhor. É um conto? Sim, será. Mas Lobo Antunes chamou-lhe crónica. O mesmo se pode aplicar aos anteriores.
A crónica é então um género híbrido, a meio caminho entre o real/referente externo e o texto autónomo (uma das características do texto literário é ser autónomo), entre o ensaio e a narrativa, entre o poema e a carta.
Muitos destes subgéneros são vítimas de um preconceito que hierarquiza a literatura. No topo, o triângulo romance, poema, peça, correspondendo grosso modo aos três grandes géneros: lírica, frama, narrativa.
Ora: um poema ou um conto é melhor só porque se inscreve automaticamente num género «superior»?
Aqui, alguns exemplos de interessantes crónicas não-literárias: Pedro Tadeu, «O futebol devia ser proibido»», João Pedro Henriques, «Violência Doméstica. Crime sem Castigo», ambos no DN de hoje, qeu aqui uso por serem de acesso aberto.
Quando se torna a crónica literária? Bem, não havendo uma regra óbvia , a crónica literária dá um salto no modo como conta, e tem tendência a libertar-se do referente imediato.
Os casos de Sttau Monteiro, Miguel Esteves Cardoso e António Lobo Antunes são luminosos:
1) Sttau Monteiro apaga-se para dar voz a uma personagem, a Guidinha, uma menina pré-adolescente muito pespineta, malcriadita e sem papas na língua, que passa a vida a dar pontapés na lógica (ainda por cima em torrente) e na pontuação - também daria na gramática, não fosse o jornal na época ter provavelmente imposto limites. Mas penso em Manoel de Barros, em Raymond Queneau (Zazie dans le metro), em Guimarães Rosa (Grande Sertão - Veredas), em Mia Couto.
2) Miguel Esteves Cardoso não conta propriamente uma história, antes trata uma questão moral da sociedade portuguesa, quase sempre com três peculiaridades: a) poucos ou nenhuns tinham reparado nela; b) fálo com um ouvido para exemplos tão estapafúrdios quão certeiros, reveladores de um grande ouvido; c) no final, como com Oscar Wilde, saímos mais divertidos e mais lúcidos, em igual medida, divertidos «com o disparate», mas coçando mentalmente a cabeça e reconhecendo que «o gajo até tem alguma razão».
3) Lobo Antunes nunca abandona o seu estilo, a sua voz, ao contrário de outros escritores, que se tornam «mais contidos», mais secos, ao escreverem para um jornal. Na crónica abordada em aula (ver último post), temos o melhor deste autor: o seu sentido de observação, a capacidade poética e crítica em iguais doses, uma voz que narra e que, paulatinamente, vai ampliando a força e o alcance do texto, tornando-o quase cósmico, devolvendo-nos uma realidade que, depois de trabalhada pelo seu método quase surrealista, nos magoa melhor. É um conto? Sim, será. Mas Lobo Antunes chamou-lhe crónica. O mesmo se pode aplicar aos anteriores.
A crónica é então um género híbrido, a meio caminho entre o real/referente externo e o texto autónomo (uma das características do texto literário é ser autónomo), entre o ensaio e a narrativa, entre o poema e a carta.
Muitos destes subgéneros são vítimas de um preconceito que hierarquiza a literatura. No topo, o triângulo romance, poema, peça, correspondendo grosso modo aos três grandes géneros: lírica, frama, narrativa.
Ora: um poema ou um conto é melhor só porque se inscreve automaticamente num género «superior»?
Comentários
Enviar um comentário