«Os meus domingos»
Aos domingos a seguir ao almoço visto o fato de treino roxo e
verde e os sapatos de ténis azuis, a Fernanda
veste o fato de treino roxo e verde e os sapatos de salto alto do casamento, subo o fecho éclair até ao pescoço e
ponho o fio de ouro com a medalha por fora, a
Fernanda sobe o fecho éclair até ao pescoço e põe os dois fios de ouro com a medalha e o colar da madrinha por fora,
tiramos o Roberto Carlos do berço, metemos-lhe o laço de
cetim branco na cabeça, saímos de Alverca, apanhamos os meus
sogros em Santa Iria de Azóia e passamos o domingo
no Centro Comercial.
A Fernanda senta-se atrás no Seat Ibiza, com o menino e a Dona
Cinda, o senhor Borges ocupa o lugar ao meu
lado, de Record no sovaco, fato completo, gravata de flores prateadas e chapéu tirolês, ajuda-me no estacionamento
das Amoreiras a tirar o carrinho da mala e todos os
automóveis do parque são Seat Ibiza, todos têm mantas alentejanas nos
bancos, todos apresentam um autocolante no vidro que diz Não Me Siga Que Eu Ando Perdido, todos possuem uma rodela
Vida Curta na guarda-lamas direito e uma rodela Vida Longa no
guarda-lamas esquerdo, de todos os espelhos retrovisores se
pendura o mesmo boneco de peluche, todos exibem junto à
matrícula com o círculo de estrelinhas da Europa a mesma rapariga de Stetson e cabelo comprido, todos trouxeram o
Record, os sogros e o filho, todos devem habitar em
Alverca e todos circulam a tarde inteira no Centro de forma idêntica à
nossa: adiante a Fernanda e a Dona Cinda, de
raposas acrílicas, a coxear por causa de uma unha encravada,
empurrando oRoberto Carlos que esperneia, desfeito num berreiro, com a chupeta
pendurada da nuca por uma corrente e o Senhor Borges e eu vinte metros atrás, preocupados com a
carreira do Olivais e Moscavide que perdeu em Alhandra apesar de ter
comprado um avançado cabo-verdiano ao Arrentela e que em vez de jogar
à bola leva as noites a mariscar tremoços na cervejaria, de brinco na orelha, no meio dos amigos pretos, com o
tampo da mesacoberto de canecas vazias.
Como a Fernanda e a Dona Cinda param em todas as montras de móveis
eboutiques a bisbilhotarem quinanes e kispos, acontece enganar-me e trocá-laspor
outra sogra acrílica, outra mulher roxa e verde e outra criança de laço, esucede-me
passar horas num banco, sem dar pela diferença, com uma Fátima e uma Dona
Deta, a planear as prestações de um microondas e de um frigorífico novo, seguir para Alverca, jantar o frango da
Casa de Pasto e a garrafa de Sagres do costume, e só na terça-feira,
quando vou a sair para a Junta, a minha esposa informa, envergonhada, que
mora em Loures ou na Bobadela, o Roberto Carlos se chama Bruno Miguel, e deu pelo engano, há cinco minutos, porque
a minha Última Ceia é de estanho e a dela de bronze. Claro que corrigimos
o erro no domingo seguinte, em que volto para casa com
uma Celeste e um Marco Paulo no Seat, a que juntei (será o meu Seat Ibiza?)um novo autocolante que deseja Espero Não
Te Conhecer Por Acidente.
Esta semana a minha mulher chama-se Milá, o meu filho Jorge
Fernando e ando a pagar um apartamento em Rio
de Mouro. Como esta sempre cozinha melhor do que as outras não faço tenções de voltar às Amoreiras. Se ela
gostar de telenovelas só tornamos a sair daqui a muitos
anos, quando o miúdo usar um fato de treino roxo e verde, eu encontrar no
armario do quarto um casaco de raposas acrílicas e um chapéu tirolês,
e escutar lá em baixo, a seguir ao almoço, a buzina do Seat Ibiza da minha nora. Como nessa altura devo andar a dieta
de sal por causa da tensão qualquer peixe grelhado me serve.
in ANTUNES, António Lobo (1998). Livro de Crónicas. Lisboa:
Publicações Dom Quixote. pp. 59-60
Ninguém Tem Pena das Pessoas Felizes
Ninguém tem pena das pessoas felizes. Os Portugueses adoram ter angústias, inseguranças, dúvidas existenciais dilacerantes, porque é isso que funciona na nossa sociedade. As pessoas com problemas são sempre mais interessantes. Nós, os tontos, não temos interesse nenhum porque somos felizes. Somos felizes, somos tontaços, não podemos ter graça nem salvação. Muitos felizardos (a própria palavra tem um soar repelente, rimador de «javardo») vêem-se obrigados a fingir a dor que deveras não sentem, só para poderem «brincar» com os outros meninos.
É assim. Chega um infeliz ao pé de nós e diz que não sabe se há-de ir beber uma cerveja ou matar-se. E pergunta, depois de ter feito o inventário das tristezas das últimas 24 horas: «E tu? Sempre bem disposto, não?». O que é que se pode responder? Apetece mentir e dizer que nos morreu uma avó, que nos atraiçoou uma namorada, que nos atropelaram a cadelinha ali na estrada de Sines.
E, no entanto, as pessoas felizes também sofrem muito. Sofrem, sobretudo, de «culpa». Se elas estão felizes, rodeadas de pessoas tristes, é lógico que pensem que há ali qualquer coisa que não bate certo. As infelizes acusam sempre os felizes de terem a culpa. É como a polícia que vai à procura de quem roubou as jóias e chega à taberna e prende o meliante com ar mais bem disposto. Em Portugal, se alguém se mostra feliz é logo suspeito de tudo e mais alguma coisa. «Julgas que é por acaso que aquele marmanjo anda tão bem disposto?», diz o espertalhão para outro macambúzio. É normal andar muito em baixo, mas há gato se alguém andar nem que seja só um bocadinho «em cima». Pensam logo que é «em cima» de alguém.
Ser feliz no meio de muita gente infeliz é como ser muito rico no meio de um bairro-de-lata. Só sabe bem a quem for perverso.
Infelizmente, a felicidade não é contagiosa. A alegria, sim, e a boa disposição, talvez, mas a felicidade, jamais. Porque a felicidade não pode ser partilhada, não pode ser explicada, não tem propriamente razão. Não se pode rir em Portugal sem que pensem que se está a rir de alguém ou de qualquer coisa. Um sorriso que se sorria a uma pessoa desconhecida, só para desabafar, é imediatamente mal interpretado. Em Portugal, as pessoas felizes sofrem de ser confundidas com as pessoas contentes.
Miguel Esteves Cardoso, in Os Meus Problemas (1988, Lisboa, Assírio & Alvim, reed. 2013 Porto Editora)
É assim. Chega um infeliz ao pé de nós e diz que não sabe se há-de ir beber uma cerveja ou matar-se. E pergunta, depois de ter feito o inventário das tristezas das últimas 24 horas: «E tu? Sempre bem disposto, não?». O que é que se pode responder? Apetece mentir e dizer que nos morreu uma avó, que nos atraiçoou uma namorada, que nos atropelaram a cadelinha ali na estrada de Sines.
E, no entanto, as pessoas felizes também sofrem muito. Sofrem, sobretudo, de «culpa». Se elas estão felizes, rodeadas de pessoas tristes, é lógico que pensem que há ali qualquer coisa que não bate certo. As infelizes acusam sempre os felizes de terem a culpa. É como a polícia que vai à procura de quem roubou as jóias e chega à taberna e prende o meliante com ar mais bem disposto. Em Portugal, se alguém se mostra feliz é logo suspeito de tudo e mais alguma coisa. «Julgas que é por acaso que aquele marmanjo anda tão bem disposto?», diz o espertalhão para outro macambúzio. É normal andar muito em baixo, mas há gato se alguém andar nem que seja só um bocadinho «em cima». Pensam logo que é «em cima» de alguém.
Ser feliz no meio de muita gente infeliz é como ser muito rico no meio de um bairro-de-lata. Só sabe bem a quem for perverso.
Infelizmente, a felicidade não é contagiosa. A alegria, sim, e a boa disposição, talvez, mas a felicidade, jamais. Porque a felicidade não pode ser partilhada, não pode ser explicada, não tem propriamente razão. Não se pode rir em Portugal sem que pensem que se está a rir de alguém ou de qualquer coisa. Um sorriso que se sorria a uma pessoa desconhecida, só para desabafar, é imediatamente mal interpretado. Em Portugal, as pessoas felizes sofrem de ser confundidas com as pessoas contentes.
Miguel Esteves Cardoso, in Os Meus Problemas (1988, Lisboa, Assírio & Alvim, reed. 2013 Porto Editora)
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